Translate

domingo, 12 de janeiro de 2014

Ora Eça ........


Resulta o fascínio de Tormes, Meca do roteiro sentimental do queirozianismo, de ser simultaneamente palco de grande parte de uma obra prima literária – A Cidade e as Serras e casa-museu Eça de Queiroz. Pode aí confrontar-se o visitante com expressivos objectos que lhe pertenceram: a mesa alta onde escrevia de pé; a cabaia que o seu amigo Bernardo Pindela lhe trouxe do Oriente; as pinturas e gravuras que decoravam a sua casa de Neuilly, em Paris; o seu mobiliário; objectos de uso pessoal e também o que resta da sua biblioteca, de que fizemos o registo completo no Suplemento do Dicionário de Eça de Queiroz (pp.58-69). São cerca de 400 livros, alguns encadernados com as iniciais do escritor, registo este que tem servido de preciosa fonte de informação a alguns especialistas.

Chegado ao portal solarengo de Tormes e entrando ao terreiro lajeado de granito, mal compreenderá o visitante que Eça tenha atribuído àquela casa, quando a visitou pela primeira vez, em 1892, a designação de «feia, muito feia» e até de «hedionda». Não admira, porque se lhe deparou, mais do que propriamente uma casa, um vasto celeiro onde os caseiros guardavam o milho e as alfaias agrícolas. «Nos tectos remotos, de carvalho apainelado, luziam através dos rasgões manchas de céu», informa-nos Zé Fernandes. Janelas com vidraças só as havia no quarto em que Eça dormia, onde se encontra hoje a sua biblioteca.

Sem nada ter perdido do carácter essencial da feição primitiva, a casa, hoje sede da Fundação Eça de Queiroz, apresenta o conforto, a dignidade e o arranjo maior que teria encantado decerto o seu patrono. Um guia percorre sala por sala, relacionando tudo com a vivência de Jacinto, terminando o percurso na encantadora capelinha do século XVI que é a parte mais antiga da casa. O rés do chão, outrora adega, tem agora um pequeno auditório que muito bem serve os cursos de Verão, queirozianos e outros, que frequentemente lá se efectuam.

«Uma eira, velha e mal alisada, dominava o vale, donde já subia tenuamente a névoa de algum fundo ribeiro». Parta pois o visitante, terminada a visita à casa, a caminho da eira, de onde à noite poderá contemplar um «sumptuoso» céu estrelado, e terá diante de si o panorama grandioso das serras para além do rio Douro, de que apenas descortinará uma nesga, se as barragens, lhe derem altura. Cá em baixo, no vale, verá um pequeno cemitério onde repousam os restos mortais de Eça.

Rente à eira, um pouco abaixo, passa um caminho que vai descendo, sinuoso, em direcção a um grupo de casas, o lugar de Cedofeita. Há que ir até lá, porque no regresso terá o visitante a visão que Eça experimentou, decerto alvoroçado, quando viu aquela casa pela primeira vez, com uma sensação nova e, como Jacinto, com o «espírito aguçado» de proprietário. E se tiver o trepar «fácil e condescendente» desça à estação de caminho de ferro, junto ao Douro, onde Jacinto e Zé Fernandes desembarcaram e de onde partiram para a ascensão da serra, por entre «espertos regatinhos», «grossos ribeiros açodados», carvalhos, macieiras, azinheiras, laranjais rescendentes e melros cantantes.

A quinta, hoje especialmente preparada para a produção de um «esperto, fresco e seivoso» vinho branco, Tormes, de seu nome, apresenta, aqui e além, construções rurais primitivas, as antigas casas de caseiro de Jacinto, duas delas já recuperadas, estando a chamada «Casa do Silvério»,com quatro quartos, cozinha e lareira preparada para receber turistas. Do seu terreiro exterior poderá experimentar jacínticas «iniciações», ao contemplar «o enegracimento dos montes que se embuçam em sombra; os arvoredos emudecendo, cansados de sussurrar; o rebrilho dos casais mansamente apagado; o cobertor de névoa, sob que se acama e agasalha a frialdade dos vales; um toque sonolento de sino que rola pelas quebradas e o segredado cochichar das águas e das relvas escuras…»

Vasta matéria de meditação e de confronto com a realidade que suporta a ficção romanesca pode proporcionar Tormes e não só com A Cidade e as Serras, porque nessa região se passa também A Ilustre Casa de Ramires. Do outro lado do Douro, na margem esquerda, tem o visitante o que resta do mosteiro de Cárquere (Craquede no romance),onde em construção românica se encontra o panteão medieval dos Castros, almirantes do reino, transfigurado no romance em panteão dos Ramires.

De passagem para a outra margem poderá o visitante almoçar em Cinfães e usufruir uma das paisagens mais belas de rio e serras que esta região lhe oferece. E já agora lhe direi que, se for camiliano, poderá ver a casa do Lodeiro, muito perto da casa de Tormes, que o autor do Amor de Perdição frequentava, onde se passou parte do drama autêntico da infeliz Fanny Owen, tão bem narrado por Agustina Bessa Luís no romance homónimo. Aqui, como em vários outros lugares do Norte, as geografias camiliana e queiroziana caminham a par. Estas e outras perspectivas culturais e também prandiais, lhe pode oferecer o «alto lugar» de Tormes, o mais aliciante de todos os lugares queirozianos


A. CAMPOS MATOS
 Bem Hajam 
Carlos Fernandes 

Sem comentários:

Enviar um comentário