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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Paixões de Minho


A sobrecarga decorativa do traje, sobretudo
o uso e o abuso do ouro, no Norte do
País, esconde, ou melhor, revela a rivalidade
de ser a mais bela, a mais rica, a es -
colhida, em resumo, a mordoma. Esta
tem um traje próprio, azul-escuro ou ne -
gro, mas cintilante, nos seus bordados e
nos seus ouros. Na ânsia de apagar o
corpo, abria-se em profusão ornamental
adjacente. O poder económico também
se espelha na indumentária, na medida
em que o ouro corresponde a um investimento
que torna visível, perante a comunidade,
as posses da sua proprietária. Por
outro lado, o valor fiduciário dos ouros
era facilmente transaccionável, o que
equivalia a ser uma poupança utilizável
em momentos mais difíceis. Os ouros podiam ser vendidos e comprados
sempre que necessário. Convinha ter bastantes para valer em situações
financeiramente mais complexas. A ostentação deste luxo rural também en
gendrava conflitos e tensões, que deram azo a inimizades
entre as vizinhas e as próprias freguesias.
Amores e ódios que perduravam por gerações...
Voltando à mulher minhota e à simbologia real
da sua figura, não poderá deixar de se ter em con -
ta algumas formas do muito ouro que a reveste: as
laças, o coração, os brincos à rei e os brincos à
Noiva e noivo do Minho
Trajes de festa
Acessórios femininos de festa
Brincos «à rainha»
rainha. Qualquer destas peças essenciais da ourivesaria nortenha é, estilisticamente,
barroca, ou melhor, rocaille. Coincide, pela composição e pelos
ornatos, com a gramática designada como D. Maria.
A laça da ourivesaria popular deve o seu formato à intervenção real. Tem
sido tradicionalmente atribuída a D. Maria Ana de Áustria a célebre Laça de
Esmeraldas, pertencente às jóias da Coroa. Presumivelmente, a rainha tê-la-á
oferecido a uma das suas netas. Idêntica laça também está presente no
conhecido retrato da rainha D. Mariana Vitória, mulher de D. José, datado
de c. 1750. E mais laças se poderiam referir, nos retratos da aristocracia portuguesa,
nomeadamente dos finais do século XVIII.

A forma, o aparato e a magnificência das laças usadas pelas rainhas, não só
deve ter tido um enorme impacte visual, como criou o desejo entre as mu -
lheres portuguesas, ricas ou pobres, aristocráticas ou plebeias de ter algo de
semelhante, tendo-se transformado numa jóia popular. Algumas variações
da laça e a sua estilização vieram criar a peça mais original da ourivesaria portuguesa
que é comummente designada como a laça.
Não se poderá também esquecer o voto de D. Maria I e a sua devoção ao
Cora ção de Jesus: se tivesse um filho varão, mandaria erguer uma basílica.
Assim foi. E, em 1789, foi sagrada a Basílica da Estrela, «o primeiro edifício
no mundo a ser dedicado ao Coração de Jesus e que tanta divulgação haveria
de ter durante o romântico século XIX» 38. A forma do coração, que é
comummente ligada à simbologia do amor profano, remete, como se vê,
para a ordem do amor divino e da acção de graças pela dádiva do Céu. É
nesta época que se padroniza, até aos nossos dias, a forma deste coração assimétrico
e com ornatos ao gosto rocaille. É ainda o Coração de Jesus que, a
partir de 1789, D. Maria I manda timbrar nas mais importantes condecora-
ções portuguesas: as Ordens de Cristo, Avis e Santiago 39.
É, pois, o Coração de Jesus que as mulheres portu
guesas e, nomeadamente, as do Norte do País
usam ao peito. Apesar do aspecto barroco, estão
hoje apenas conotados com a forte e reconhecida
vertente lírica do Povo português. Também setecentistas,
barrocas e contemporâneas de D. Maria I, são
as formas dos brincos à rei e à rainha. A distinção
Acessórios femininos de festa
Pendente em forma de coração 
dos mesmos reside na forma esguia dos primeiros, representação estilizada,
com laço, do símbolo fálico, enquanto os outros, são volumosos, desenhando
formas arredondadas e curvilíneas. Tanto uns como outros contêm a configuração
ou a ideia de laça, uma das estruturas base da joalharia deste País.
Há a referir ainda a imagem da Senhora da Conceição, em esmalte, que fi -
gura em medalhas, medalhões e alfinetes de raiz popular. Esta figuração
constitui a resposta popular a um gesto real: D. Carlota Joaquina cria, por
favor régio, a Ordem das Damas Nobres de Santa Isabel, em 1804. Era uma
condecoração em honra da Rainha Santa, destinada só a senhoras, agraciando
assim as aias e damas que a acompanhavam e/ou a visitavam. A nível
popular, este gesto foi repetido com a prática generalizada a nível nacional
de ter a Padroeira de Portugal colocada ao peito. Este uso teve a sua moda.
Passou, desde meados do século XIX, a ser usado fora da capital, mas sobretudo
no Norte do País.


Além dos fios, cordões, grilhões e cadeias, compostos por elos de ouro, deverão
referir-se como peças invariantes da ourivesaria nacional, os colares de
contas, as argolas e as arrecadas. Qualquer uma destas peças tem raízes milenares
40. Constituem uma preservação de técnica e de formato. São indiscutivelmente
usadas por qualquer estrato social. São objectos do quotidiano.
Atravessaram os tempos, fiéis à sua concepção original, com pequenas varia-
ções. Representam mais três estruturas base da joalharia tradicional. Foram
celtas e castrejas, fenícias, romanas, visigodas e mouriscas, enfeitaram rainhas
e camponesas, compõem o colo e as orelhas da operária, da burguesa e
da feminista.
Espelham um modo de ourar português e reflectem o gosto por este material
nobre. Deverá todavia acrescentar-se que o diálogo espontâneo e natural
da mulher lusitana com estas peças de ouro é uma constante cultural 41.
Várias influências desembocam nesta tradição. «Une tradition, c’est l’action
par laquelle on transmet quelque chose; et, par extension, ce qui est transmis. La
tradition, selon Guénon, c’est ce qui est transmis à partir d’une origine humaine
et qui touche donc au surnaturel»
A associação do ouro com o Sol, a festa e a alegria é demasiado conhecida e
facilmente detectável entre nós, e poderíamos novamente invocar o grande
eixo geográfico cultural que separa o Litoral da zona serrana para delimitar
as gra dações do seu uso. Com forte incidência no Norte vai diminuindo a
presença do ouro para as planícies do Sul e rareando no interior do País. O
mesmo eixo é válido para a coloração dos tecidos, como se referiu anteriormente,
e para a manufactura dos têxteis.
Texto: Madalena Braz Teixeira


Bem hajam 
Carlos Fernandes

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