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sábado, 1 de fevereiro de 2014

1 de Fevereiro 1908



Rubrica "Palavras com História..."

O Infante D. Manuel, que sucederia a D. Carlos, seu pai, no trono, escreveu as seguintes palavras acerca dos acontecimentos vividos a 1 de Fevereiro de 1908:

"Eu estava olhando para o lado da estatua de D. José e vi um homem de barba preta, com um grande gabão. Vi esse homem abrir a capa e tirar uma carabina. Eu estava tão longe de pensar n'um horror d'estes que me disse para mim mesmo, sabendo o estado exaltação em que isto tudo estava que má brincadeira. O homem sahiu do passeio e veio se pôr atraz da carruagem e começou a fazer fogo. Quando vi o tal homem das barbas que tinha uma cara de meter medo, apontar sobre a carruagem percebi bem, infelizmente o que era. Meu Deus que horror. O que então se passou só Deus minha mãe e eu sabemos..."

O homem das barbas que tinha uma cara de meter medo era precisamente Manuel dos Reis Buiça, nascido em Bouçoães em 1876. Filho do reverendo Abílio da Silva Buíça, pároco de Vinhais, e de Maria Barroso, casou duas vezes, a segunda das quais com Hermínia Augusta da Costa. Iniciou a sua carreira profissional no exército, onde alcançou a categoria de 2º sargento no regimento de cavalaria de Bragança. Senhor de uma pontaria exímia, detinha o curso de mestre de armas e uma medalha de atirador de 1ª classe, exercendo enquanto militar o cargo de instrutor da carreira de tiro do seu regimento. Possuidor de um temperamento difícil, Manuel dos Reis Buiça teve uma carreira militar extremamente conturbada, acabando por ser demitido do exército na sequência de várias punições disciplinares, por infracções diversas. Abandonando a vida militar, enveredou pela carreira de professor do ensino livre, leccionando na Escola Nacional e na Escola Universal; ministrava também, a nível particular, lições de música e francês.
De linhas fisionómicas finas, com uma barba escura com laivos de fogo, tinha uns olhos muito azuis que mostravam uma índole resoluta e exaltada.

A Manuel Buíça e Alfredo Costa, tombados pela liberdade

Estimam-se os primeiros reis na razão direta dos infiéis que abateram e das terras que lhes tomaram. O assassinato do Conde Andeiro é exaltado por ter sido útil à dinastia de Avis, tal como em 1640 se exultaria com o corpo de Miguel de Vasconcelos crivado de balas a ser atirado por uma janela. A restauração da independência do reino de Portugal transformou o homicídio em ato heroico e a vítima em traidor, tornando odioso o nome Miguel antes de o denegrir ainda mais o homónimo candidato a rei absolutista.

Ninguém lamenta hoje os crimes da evangelização do Brasil ou a crueldade com que os vice-reis da Índia subjugaram os povos indígenas e, muito menos, se lamentam dezenas de milhares de mortes que D. Nuno infligiu aos castelhanos sem que a frieza com que os aviou, a evocarem um santo diferente do seu, lhe tolhesse a canonização ou beliscasse a heroicidade, para orgulho dos portugueses.

D. João II esfaqueou ele próprio um primo e cunhado e, por ordem sua, foi executado o duque de Bragança, o bispo de Évora e muitos outros, sacrificados a objetivos políticos que fizeram dele o rei mais venerado da História de Portugal.

Hoje, condenamos sem hesitação a escravatura, o Santo Ofício, a evangelização dos índios, as perseguições aos judeus e a pena de morte, mas seríamos hipócritas se denegríssemos D. Afonso Henriques, o Mestre de Avis, Nuno Álvares, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque ou o marquês de Pombal e os evocássemos pelos que mataram e não pela forma como ajudaram a moldar a pátria que nos legaram.

Sem referir a arraia miúda, cujos tormentos não soem emocionar os povos, é oportuno lembrar os Távoras e recordar os liberais que sofreram as crueldades miguelistas, antes de prestar homenagem a Manuel Buíça e Alfredo Costa, Libertadores da Pátria Portuguesa, a quem a Associação do Registo Civil e do Livre Pensamento homenageou com um mausoléu da autoria do escultor Júlio Vaz, aonde, durante a 1.ª República, se fizeram romagens de grande fervor patriótico.

O rei de uma coroa odiada, o monarca desacreditado que desprezava o país, perante a degradação ética e a bancarrota, indiferente às vidas que sacrificava, assinou friamente a suspensão da Carta Constitucional e deu a João Franco o poder de fechar o Parlamento, encerrar jornais, reprimir manifestações e encarcerar oposicionistas para os desterrar para Timor. Ao suspender a Carta, D. Carlos responsabilizou-se pela ditadura de João Franco e decidiu o seu trágico fim.

Foi nesse contexto que Manuel Buíça e Alfredo Costa foram designados para eliminar o rei. E cumpriram, sabendo que morriam. Não foram assassinos, como os monárquicos e os sectores reacionários proclamam. Executaram uma sentença, sentindo ser um dever cívico, e imolaram-se num ato de suprema coragem para evitarem o degredo e a morte aos correligionários e à Pátria a violência da ditadura.

A notícia do regicídio gerou uma onda de alívio nos portugueses que reclamavam, há muito, a cabeça do rei. Apesar dos riscos houve quem fosse apertar a mão do cadáver ensanguentado de Manuel Buíça que ousara libertar a Pátria de quem a designava como a piolheira.
Manuel Buíça e Alfredo Costa foram idealistas que lutaram pela liberdade. Mataram por patriotismo e caíram como heróis. Foram mártires que honraram a causa que defendiam, dando a vida pela liberdade, vertendo o sangue pela República.

O poeta José Gomes Ferreira escreveu: “Agradeço a meu pai a coragem com que, no momento do funeral do Rei, me levou a visitar os covais dos regicidas no Alto de S. João. Amo os mortos malditos e escorraçados” (in: “Calçada de Sol”)

Guerra Junqueiro, o poeta admirado por Unamuno, o que melhor exprimiu o sentimento do povo português, desabafou: «Não mataram o rei; suicidou-se. O rei era um monstro maléfico, perturbador consciente de quatro milhões de criaturas» e acrescentou, depois, «Lamento, de olhos enxutos, a execução do monarca. Mas, se tivesse o dom de o ressuscitar, não o levantaria do seu túmulo». (ALMANACH D’O MUNDO para 1909).
Alfredo Costa e Manuel Buíça foram assassinados com inaudita crueldade pela polícia do ditador João Franco depois de matarem o rei com a noção da sorte que os esperava.

Sabiam que não teriam, nem esperavam ter, benefícios pessoais do acto. Quiseram, tão só, libertar a Pátria da ditadura, eliminando o rei inapto que, ao assinar a suspensão da Carta Constitucional, perdeu a legitimidade, tornou-se cúmplice da repressão e assinou a sua sentença de morte.

Honrar a memória de Alfredo Costa e Manuel Buíça não é pactuar com a violência nem fazer a apologia do homicídio, é cumprir o dever cívico de dignificar dois heróis que a ditadura salazarista, de pendor monárquico, caluniou e desqualificou. É situar o acto no tempo e explicar as circunstâncias. É pagar a dívida aos que, sem nada esperarem em troca, foram capazes do sacrifício supremo por um ideal. Não é o regozijo pela morte de D. Carlos e do príncipe herdeiro que aqui se manifesta, é o tributo de respeito pela vida imolada no altar da Pátria e pelo sofrimento e humilhação de que foram vítimas os descendentes dos regicidas cuja grandeza moral não residiu no acto que praticaram mas na força das convicções, na abnegação com que se sacrificaram e no sentido da honra.

A carta escrita por Manuel Buíça, em 28 de Janeiro, quatro dias antes do regicídio, com a assinatura reconhecida pelo tabelião Motta, na rua do Crucifixo, em Lisboa, revela bem o carácter e a dimensão ética do homem de coragem, determinado e com profundo amor à pátria. Eis um comovente parágrafo:
«(…) Meus filhos ficam pobrissimos; não tenho nada que lhes legar senão o meu nome e o respeito e compaixão pelos que soffrem. Peço que os eduquem nos principios da liberdade, egualdade e fraternidade que eu commungo e por causa dos quaes ficarão, porventura, em breve, orphãos».
Texto Carlos Esperança 
Bem hajam 
Carlos Fernandes

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