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sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

"O burgo mais Português", Monsanto Beira Baixa

As ruelas tornam-se mais estreitas e quase capilares, aproximando as muralhas do castelo. Deste ponto alto da serra a aldeia é só já um conjunto de telhados incrustados em declive rochoso. Obeliscos graníticos irrompem na paisagem grandiosa. As serras, os vales e uma vista quase infinita sobre a terra e o céu, o espaço...
Pela porta arqueada do castelo, onde outrora existiu um fosso com ponte levadiça, segue a procissão. No pátio, o rancho folclórico inicia a penúltima fase deste ritual milenar. Ao som do acordeão, as bonecas marafonas não param de dançar.
Adoradas como símbolo, amuleto ou potestade, não há noiva que ao casar não a coloque sobre o leito na noite de núpcias. Fun-ciona então como a deusa da fertilidade. Não tem olhos, nada vê do que se passa na cama. E se não tem olhos, como dizem com ironia as mulheres, não pode ver a «badalica» do noivo.Lenda
Não tem boca nem ouvidos, nada ouve, nada conta. Deidade silenciosa e cúmplice que, em troca do seu silêncio, garante a continuidade da família.
Ao fim de hora e meia extenuados, músicos, bonecas e mulheres dão por finda a actuação. Mais um lanço de escadas e o bezerro chega finalmente ao destino. A amurada mais alta do castelo. Num ri-tual pagão é dita a reza e agrupados junto à muralha os lançadores esperam o momento do arremesso. Em gritaria colectiva, os objectos rituais são atirados «borda fora» e, ao embaterem nas escarpas rochosas, quebram-se abandonando as flores ao vento.
Os adufes calam-se suavemente. Debaixo do braço das mulheres repousam no regresso a casa. Instrumento de origem árabe, toda a aldeã que se preze sabe executá-lo.
Adufe é isso: uma caixa musical cujo som vai bem ao modo do cantar das gentes da Beira Baixa e das melodias ritmadas, ao «jeito» da terra cantaroladas, para exaltar a Virgem Maria, a mulher desposada, o castelo da terra ou a Senhora do Almortão.
A brisa traz o aroma de churrasco. Está na hora de descer para a aldeia. O caminho torna-se mais fácil e a arquitectura mais definida.
A construção das habitações, térreas ou de um só piso, são de traço típico popular beirão e apresentam uniformidade de estilo. Sobressaem na paisagem morena os solares pertencentes à fidalguia. Nos pátios das casas de pedra que parecem nascer entre rochas e flores assam-se febras, frangos e bacalhau. O vinho não se faz por esperar. A euforia das festas continua tarde fora até ao anoitecer pelas ruas de Monsanto: «O burgo mais português.»
Bem hajam 
Carlos Fernandes

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