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domingo, 1 de dezembro de 2013

Não deixem morrer a aldeia

Dizem que um acto de destruição é um acto que faz desaparecer qualquer coisa. Se não se perguntar mais nada acerca da circunstância e da razão desse desaparecimento, pouco esclarecimento haverá. Pode ser até pura ilusão, ou não sejam os próprios ilusionistas os verdadeiros especialistas do desaparecimento.
Num registo bélico, a destruição é o aniquilamento do inimigo…, mas existem outros sentidos bastante mais positivos onde a destruição é condição necessária para o renascimento e a criação. Assim pensou o bom Deus quando avisou Noé que iria destruir a humanidade com um dilúvio para que tudo recomeçasse de novo como o Sol em cada amanhecer e a criação se reconciliasse de uma vez por todas com o criador. Não deu em nada, a julgar pelo que se passou entretanto e pelos resultados dos múltiplos dilúvios e catástrofes que aconteceram.

Os fragmentos de imagem/texto que se apresentam a seguir pertencem à Vida no Campo (Domingues, 2011, Dafne, Porto, no prelo), um ensaio sobre a destruição ou, num registo mais psicológico, sobre a perda do Portugal Rural. Vida no Campo é, por isso, uma metáfora sobre a perda desse Portugal Rural e um antídoto contra este mau viver pelo despovoamento, pelo abandono, ou, noutro registo, pela profunda metamorfose que vai lavrando pelo país dos (ex)agricultores, pela perda das suas práticas ancestrais, modos de vida, território e paisagens. Ruínas, em muitos casos.
Não é esta uma questão menor. Como a Língua ou a História, a paisagem é um poderoso marcador identitário, uma casa comum. No entanto, não há paisagens para sempre. A paisagem é registo da sociedade que muda e se a mudança é tanta, tão profunda e acelerada, haverá registo disso e pouco tempo e muito espaço para compreender e digerir todas as marcas e a forma como se vão atropelando mutuamente, ora relíquias, ora destroços.
Ao mesmo tempo, se muda a paisagem, os referentes estáveis que as imagens da paisagem produzem entram numa atrapalhação, num acelerar de diferenças onde, frequentemente, se reconhece melhor o que se perde do que o que se ganha de novo e o modo como é avaliado esse ganho, porque parece ser estranho ou exótico, não ser dali, não ser vernacular como diziam os romanos dos escravos que nasciam em casa por contraposição aos que eram recrutados algures com os seus estranhamentos.
É por isso que é tão frequente dizer-se da destruição que se está a produzir, da descaracterização, da perda de supostas autenticidades que de tanto mitificadas parecem ter pertencido a um tempo primordial, sem história e sem outro referente que não seja um passado mais que perfeito onde a vida no campo era a imagem do Paraíso e do bom povo sábio, pobre mas honesto que vivia na sua simplicidade, alegria e comunhão com a Natureza e oração com os deuses.
As marcas e as memórias desse Portugal Rural vão-se decompondo com a desruralização e o seu rastro de efeitos colaterais: o despovoamento, o envelhecimento, o abandono da produção agrícola e dos campos, o desaparecimento de certos estilos de vida, saberes e práticas culturais – o interior, no dizer mais frequente sobre estas coisas. Os poucos que vão ficando vivem de uma economia assistida entre pensões, reformas, poupanças, ou remessas de familiares e quem pode sai porque são escassos os empregos, e a miragem do bucolismo e dos paraísos perdidos é mais de quem está de fora (do tal interior) e pensa que o rural e natureza são lugares para passar férias e turismo
Bem hajam
  Carlos Fernandes

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