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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Endireitas .................. "O Alentejo não tem fim"

Endireitas. Toda a vida os houve e continuam a existir, embora a comunidade médica não os veja com bons olhos. O “Diário do Alentejo” esteve com três amanhas, que ganharam fama pelo seu jeito para encanar e compor ossos deslocados ou fraturados. Pelas mãos de Jorge Lota (dr. Jorge), Manuel Chaíça (Manuel barbeiro) e Manuel Silva (Ferreirinha) passam as dores de gentes que chegam de vários sítios do País, e até de Espanha, à procura de quem as ponha no lugar.



Texto Bruna Soares Fotos José Ferrolho

 

O termómetro deixa adivinhar um dia quente. Às 10 horas já marca 25 graus. Os homens que se avistam nas pastagens, de mangas arregaçadas e camisas abertas, não escondem o calor, até porque lhes transparece nas gotas de água que lhes escorrem pela cara, que se enrugou pelo sol.

O gado passeia-se no campo e junto a ele está Jorge Lota. Tem o seu rebanho por companhia, mas à sua espera, no monte de barra amarela que se abeira à estrada, perto de Ferreira do Alentejo, já estão umas quantas pessoas, doídas pelas maleitas e desarranjos do corpo. Pelos maus jeitos.

Uma mulher pergunta pela casa do endireita, enquanto o marido estaciona o carro, embora seja ele que tenha aquela maldita pontada nas costas, que insiste em não desaparecer. Quem está acena positivamente com a cabeça. No chão repousam vários cães, pachorrentos como a manhã que acordou.

Jorge Lota, corpulento, de boina na cabeça e calças sujas pelo trabalho na terra, chega na sua carrinha de caixa aberta. O cigarro trá-lo aceso, mas rápido o repousa no cinzeiro.

“Bom dia minha gente”. É assim que cumprimenta quem está. Sem desacelerar o passo segue em direção ao banco que acolherá todos aqueles que estão doloridos. Lembra-se do homem que estacionava o carro? É o primeiro a sentar-se. Jorge Lota passa-lhe os dedos pelas costas. Uma e outra vez. Pensa e não diz uma palavra, enquanto a mulher do homem dolente explica todas as quedas que o marido deu, mesmo que já tenham sido há mais de 20 anos.

Um puxão, outro, e, por fim, uma palavra. “Você custa-lhe a respirar, cansa-se muito?”, pergunta Jorge Lota. A mulher antecipa-se e responde. “Sim é verdade, se for para levantar pesos fica logo branco. Agora, a andar não se cansa. Isso anda melhor do que eu”. A conversa prossegue. Mais um esticão. Está pronto. Pode seguir viagem.

O próximo magoado senta-se. “Este é um desmancho fácil. Só aqui um jeitinho e está bom”, afirma.

Mas como começou esta vida de endireita? “Há 40 anos que faço isto. Não aprendi praticamente com ninguém. Quando era rapaz a nossa vida era difícil, ainda mais do que é hoje, e uma pessoa precisa de ter ideias. Comecei a fazer isto e pegou, mas pegou porque sabia o que fazia”, conta Jorge Lota. E acrescenta: “Pegou tanto, que me alcunharam de ‘dr. Jorge’”.

Isto de “consertar” pessoas, segundo o endireita, “tem muito que se lhe diga”. “Não é qualquer um que pode fazer isto. Mexer no corpo de uma pessoa é uma tarefa muito delicada e de muita responsabilidade. Não se explica, não se ensina. Ou se tem aptidão ou não se tem”, assegura.

Entretanto, já tem entre mãos as dores de mais uma mulher. É uma picada debaixo do peito que a incomoda. Jorge Lota volta a passar a mão pelas costas. Abraça a mulher e dá-lhe um aperto no peito.

“Já me passou de tudo pelas mãos”, diz. Mas, de acordo com Jorge Lota, “há também quem chegue aqui e não tenha nada”. “Vejo logo quando estou perante um caso desses. Às vezes o mal está na cabeça das pessoas. Tenho de ser um bocadinho de tudo. De endireita, de psicólogo”, conta.

Garante que não recusa ajuda a ninguém e que, por esse motivo, mal tem tempo para si. E reforça: “Como é que eu posso deixar isto se me aparecem aqui pessoas de todos os sítios do País? Até espanhóis aqui chegam”.

De Serpa também chegam notícias de um endireita. De Ferreira do Alentejo à Cidade Branca são 54 quilómetros de distância. As temperaturas às 14 horas já subiram. O termómetro fixa-se agora nos 32 graus. Nas ruas pouca gente se avista. Perguntamos pelo endireita da terra e rapidamente respondem: “É o Manuel barbeiro”. Trata-se, na verdade, de Manuel Chaíça, que, como já se pode adivinhar, para além das técnicas de corte de cabelo e barba, sabe da arte de meter pessoas no lugar.

Não há letreiro algum que anuncie a barbearia, tal como não existe nenhum que apregoe o seu dom para tratar lesões ósseas. Apenas uma porta verde aberta. Uma cadeira de barbeiro, bem como a bancada repleta de pincéis, navalhas, aftershave e afins. E no topo um quadro com uma fotografia da equipa do seu coração, o Benfica.

Quem o vê assim, vestido de bata branca e com os óculos pendurados, bem lhe pode parecer que está na frente de um médico. “Não sou. Não sou médico. Tenho este dom e tenho a obrigação de ajudar as pessoas, embora existam médicos que reconhecem este meu jeito”. É assim que começa a conversa Manuel Chaíça, que dá jeito às dores dos outros há pelo menos 13 anos.

“Passo os dedos e sinto. Isto não se aprende. Isto é um dom”. Insistimos e explica: “Chega aqui uma pessoa qualquer. Basta-me jogar, por exemplo, as mãos às costas. A pessoa diz-me onde lhe dói e eu consigo apanhar o mal. Melhor, os meus dedos é que o apanham”.

Na fila de espera apenas clientes para cortar o cabelo, mas a explicação, essa, surge rapidamente. “Desde há uma semana que não posso amanhar ninguém. Fui contra um bico de um móvel e tenho uma dor no peito. Quase não posso comigo, quanto mais com os outros. Enquanto isto não passar não posso atender ninguém, com muita pena minha, porque eu não gosto de recusar”.

É aqui, na sua barbearia, que atende quem chega. “Tanto os posso sentar ali naquela cadeira, como nesta de cortar cabelo, consoante o que for preciso fazer. Às vezes até no chão. Isto depende muito. Tenho dias que tenho aqui mais gente cheia de dores do que clientes para cortar o cabelo”, garante Manuel Chaíça.

Um dos filhos, garante, “já se encantou por este dom”. “Pede-me várias vezes para o ensinar, mas eu não o posso ensinar. Isto não se ensina”.

Ao fundo o rádio debita músicas. Manuel Chaíça continua a cortar cabelos, uns cortes mais audazes, outros apenas à máquina zero. “As pessoas começaram a perceber que tinha este dom e foram aparecendo. A palavra transmitiu-se de boca em boca e chega-me aqui gente de todo o lado”, conta o endireita. Tanto é que não esquece o dia em que um autocarro cheio de gente lhe chegou à porta vindo dos lados de Cascais. “Uma excursão. Quando vi o que tinha à porta nem queria acreditar”, conta.

Quem acreditou bem cedo no dom que tinha foi Manuel Ferreira Silva, mais conhecido por “Ferreirinha”. Seguimos viagem. Desta vez em direção a castelão, freguesia de São Luís, Odemira.

Nascido numa família de endireitas, filho e neto da arte de saber amanhar, cedo se apercebeu que o dom de alinhar os ossos também o tinha. Em pequeno observava, mas foi no dia que partiu uma perna em dois sítios, depois de ter levado a marrada de um boi, que despertou para a arte de meter no lugar. “O meu pai é que me amanhou. Meteu-me os ossos no lugar. Meteu talas e meias cheias de areia. Mais tarde parti um braço e estes problemas despertaram-me para este dom”, conta Manuel Silva.

À sua porta vão parando carros, uns atrás dos outros. Um homem, com a mão no peito, abeira-se. “Sr. Ferreirinha tem de ver o que eu tenho”, avisa. “Certamente”, responde o endireita. “Sente-se ali no banco”, acrescenta.

“Andei a carregar umas caixas de feijão. Dei um jeito e quase não me dou mexido”, conta o homem, que ora fecha, ora arregala os olhos. O endireita pega nos pulsos do mal amanhado. Estica-lhe os braços. Um puxão e diz: “Já está no lugar”.

A conversa prossegue. “Isto não é aprendido. Isto é inato. Nasce connosco. Há os cantadores, os poetas e depois há os que têm este dom e há os que têm tantos outros”, explica Ferreirinha, concluindo: “Penso que não consigo ensinar isto a ninguém. Têm vindo enfermeiras e pessoas com estudos ter comigo. Passam cá um tempo. Observam, tento explicar qualquer coisa, mas não adianta. Não conseguem aprender. Julgo, então, que não conseguirei ensinar isto a ninguém”.

Um novo carro aproxima-se do portão. Mais um candidato ao banco do sr. Ferreirinha. Não tarda que chegue outro. “Isto, normalmente, é sempre assim. Há sempre alguém a precisar”, explica o endireita, que só não alinha gente aos feriados e aos domingos à tarde.

Manuel Silva há 20 anos que se dedica a esta atividade. “O meu pai faleceu e depois fiquei eu. Depois do meu pai morrer as pessoas nunca mais me deixaram”. Antes, no entanto, já fazia qualquer coisa. “Amanhei uns quantos moços. Trabalhava com eles e quando era preciso metia-os no lugar”, conta.

Mais um carro, mais um desarranjo. “Tenho casos difíceis, mas estes que estão a ver são coisas muito fáceis graças a Deus. Com um jeitinho e as pessoas ficam boas”, conta o homem.

castelão fica a meio caminho. Entre São Luís e Odemira. E o caminho há muito que é procurado por muitos doídos à procura de cura. Chegam de norte a sul.

Jorge Lota (dr. Jorge), Manuel Chaíça (Manuel barbeiro) e Manuel Silva (Ferreirinha). Três endireitas que garantem que não cobram nada a ninguém. Aqui, asseguram, “só dá algo quem quer e se entender que o deve dar”.

In Diário do Alentejo 
Bem hajam 
Carlos Fernandes




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