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sexta-feira, 6 de maio de 2016

Vinho de Talha



Considerada em risco de extinção, a produção de vinho da talha tem resistido no Alentejo. A técnica herdada dos romanos caracteriza-se pela simplicidade de processos.

A imagem cativa pela simplicidade. Ao longo do balcão de
mármore humedecido pelas pingas que caem, alinham-se homens meia-idade de boina na cabeça, um ou outro de fato-de-macaco. Todos têm à frente uma peça de fruta sobre um lenço de pano e o canivete ao lado. Peras, "pêros", pêssegos ou marmelos fazem a merenda tradicional que, ao fim da manhã de um dia de semana, vai sendo ingerida com parcimónia, acompanhada por copinhos de vinho branco servidos a bom ritmo. "Se não pedirem tinto, sirvo sempre branco. Isto é uma terra de brancos", explica António Francisco, dono, juntamente com a mulher Maria Júlia, da Taberna "O Arco". Fica no centro de Vila de Frades, freguesia situada às portas da Vidigueira, conhecida por ser o berço da casta Antão Vaz. Faltam poucos dias para a chegada do vinho novo, aquele que todos querem provar. E o que eles desejam está lá ao fundo do estabelecimento, junto à parede: três enormes talhas de barro, duas contendo vinho branco e outra vinho tinto, feitos ali mesmo.

Na auto denominada Capital do Vinho da Talha, é assim, todos os anos, por esta altura - tal como sucede um pouco por todo o Alentejo, com especial relevo nas sub-regiões de Borba, Reguengos de Monsaraz, Vidigueira e Granja. A feitura de vinho por processos artesanais, recorrendo à utilização de grandes vasilhas de barro, uma técnica herdada do período romano, subsiste, apesar de ter caído em desuso. Ao contrário da moderna produção enológica, assente em alta mecanização e no uso frequente de substâncias químicas que dão a segurança e a homogeneidade que o vinho engarrafado em grandes quantidades requer, este método arcaico de vinificação caracteriza-se por uma enorme simplicidade. Está ao alcance de quase todos saber fazê-lo, sendo esta considerada a origem do genuíno "vinho caseiro". Não espanta, por isso, que muitos dos clientes da taberna "O Arco" sejam também eles produtores. Na verdade, é uma prática que até já foi muito mais difundida, mas que se foi perdendo, tal como sucedeu com a feitura caseira do pão, por exemplo.

Como em  muitas outras regiões agrícolas da Europa meridional, noutros tempos, rara era a casa de agricultor que não tivesse produção vinícola própria. Mas, antes dos recursos trazidos pela evolução tecnológica, nada era garantido. "O processo é manual e cheio de riscos", podendo ficar tudo perdido, se não se tiverem os necessários cuidados, explica José Miguel Almeida, secretário-geral da Vitifrades, associação de desenvolvimento local surgida em 1998 e dedicada à promoção e valorização do vinho da talha. Reúne cerca de uma centena de associados dos municípios da Vidigueira, Cuba e Alvito, sendo metade deles de Vila de Frades. Os seus principais objectivos são o aumento da notoriedade desta prática enológica e a melhoria constante da qualidade do vinho assim produzido. Para isso muito tem contribuído o concurso que organiza, todos os anos, e distingue a melhor produção. Acontece durante as Festas Báquicas Vitifrades - este ano, na sua 14ª edição, realizam-se entre 9 e 11 de Dezembro.

O vinho é chamado da talha por, justamente, ser feito nesse recipiente de barro. A olaria foi trabalhada com especial sofisticação pelos romanos, sendo disso exemplo os vestígios encontrados nas vizinhas ruínas de São Cucufate. E isto terá especial importância no decurso do processo de vinificação, por o barro ser um material poroso e assim permitir uma microxigenação no interior da vasilha - que é besuntada previamente com pez, uma resina natural, a fim de evitar a oxigenação excessiva. "Existe uma grande possibilidade de se realizarem trocas gasosas através das paredes de barro da talha, o que beneficia o vinho tinto", explica José Miguel Almeida, salientando, porém, que os procedimentos são iguais para brancos e tintos. O dado mais importante, e sempre sublinhado por quem está ligado à produção, é mesmo o facto de nela não se usarem produtos químicos. "Faz-se tudo de forma tradicional, não lhe adicionamos leveduras, nem enzimas, nem taninos. Usamos zero quantidade de sulfuroso", garante o dirigente associativo e técnico de viticultura.

Apenas leveduras naturais, ou "indígenas", das uvas actuam, durante o processo de feitura da bebida. "Se, um dia, houver uma definição precisa do que é um vinho biológico, este será o que mais se lhe aproxima", afirma José Miguel, notando que as únicas substâncias adicionadas são o ácido tartárico, visando corrigir a acidez do vinho - caso contrário, o calor característico da região alentejana fá-la-ia c D cair irremediavelmente -, e o metabissulfito de potássio, com função antioxidante. Tirando isso, nada mais entra nas talhas. Como resultado dessa não utilização de correctivos, que na produção corrente visa garantir a homogeneização dos vinhos engarrafados, verifica-se uma grande heterogeneidade de estilo e de qualidade entre colheitas. Ao contrário do que sucede com a generalidade da produção colocada no mercado, não existe um vinho igual, de um ano para o outro.

A arte no barro
Ora, então, vamos lá explicar como é que as coisas se processam. Tudo muito frugal. As uvas são desengaçadas, isto é, separadas da parte lenhosa, e esmagadas, como sempre acontece. Colocadas nas talhas, nas quais acontecerá o processo fermentativo, medem-se a densidade do mosto e da sua temperatura, para assim saber o teor de açúcares. No período das 48 horas seguintes, inicia-se a fermentação do mosto - o qual é analisado para determinar o grau de acidez e a eventual necessidade de se lhe adicionar ácido tartárico. O vinho terá que ficar em contacto com as massas, até ao São Martinho. Mais ou menos, dois meses. Durante esse período, é necessário mexer diariamente as massas com um rodo de madeira - uma vara com uma "cabeça" -, mergulhando-as na parte líquida. Isto, a "molha da manta", é feito duas a três vezes, na fase mais tumultuosa da fermentação, que decorre nas primeiras duas a três semanas, e apenas uma, no restante período. No fim do processo, só existe vinho à superfície, com as massas no fundo.
Durante o período de feitura do vinho, através do seu contacto continuado com as massas, diz-se que ele está "na mãe". A camada de álcool e de dióxido de carbono que se vai acumulando na parte superior, associada ao próprio formato da talha, funciona como uma espécie de vedante natural, impedindo a oxidação. Dois meses após o começo da fermentação, retira-se o vinho pela torneira colocada no orifício existente na parte inferior da vasilha de barro, sendo de imediato colocado na parte superior da mesma. Chama-se a isto "passar o vinho", funcionando tal processo como uma filtragem natural do vinho através da parte sólida entretanto acumulada no terço inferior da talha. O objectivo é torná-lo o mais límpido possível. Estará assim pronto para consumir, sobretudo nos dois meses seguintes, pois trata-se de um produto de acentuada sazonalidade. Aliás, uma parte substancial da mais recente produção própria da Vitifrades (cerca de dois mil litros) será consumida durante as próximas Festas Báquicas.

Ainda assim, a associação lançará aproximadamente três mil garrafas de tinto, a partir das uvas Aragonez e Alicante Bouschet colhidas, na campanha deste ano, na vinha própria, que tem 0,8 hectares. Será a segunda safra do Vitifrades Amphora, "o único vinho de talha certificado em Portugal", já produzido na nova adega. O Amphora estreou-se, há poucos meses, com 900 garrafas de branco, feito a partir das castas Antão Vaz e Arinto resultantes da vindima de 2010. Existem outras produções de "vinho da talha" no Alentejo, mas não serão bem a mesma coisa do que aquela originária de Vila de Frades, alerta José Miguel Almeida. "Temos observado algumas tentativas por parte de grande produtores de, através do que escrevem no contra-rótulo das suas garrafas, sugerirem que utilizam as técnicas tradicionais do vinho da talha. Mas nós é que seguimos as regras", diz.



Bem hajam 
Carlos Fernandes

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